terça-feira, 1 de março de 2011

A História Vive

Texto usado no 1º dia de aula
           
             
              A História sempre foi cultivada.  De todas as ciências sociais, deve ser a mais antiga.  Há rudimentos de Sociologia, Economia e outras na Antigüidade, mas uma configuração razoável dessas disciplinas é recente:  da Economia, na 2a  metade do século XVIII; da Sociologia, só no XIX.  Poder-se-ia lembrar que o Direito e a Filosofia são milenares, mas a História deve ser anterior, pois não se concebe o homem sem preocupação pelo passado, como pelo presente e futuro.  Ele é essencialmente marcado pelo tempo, seja quanto à sua idade pessoal, seja quanto à época que lhe é dada a viver.  Mesmo em textos muito antigos aparece o interesse histórico: assim na mitologia, de princípio indeterminável, nas sagas e lendas, nos poemas.
            A Bíblia é pronunciadamente histórica, preocupada com o processo social, detendo-se nas origens, na genealogia. Antes de Heródoto havia relatos e narrativas e até explicações de trajetórias dos homens e sociedades. No mundo clássico houve historiadores notáveis, na Grécia e em Roma, em busca de explicações.  A Idade Média também os conheceu.  Eles se multiplicaram a contar do século XVI, na superação da crônica.  No XVII aumenta o número, que atinge maior vigor no XVIII.   Já no XIX, entretanto, há mais maturidade com as técnicas de tratar os documentos, a leitura e a decifração de escritas antigas, mais preocupação com o social em ciências como a Política, a Economia, a Sociologia, que dão instrumental para melhor entender  a realidade pretérita ou presente, com o surgimento de novas nações e o desejo de superar dificuldades, o que leva ao estudo do desenvolvimento de povos ou questões, em perspectiva temporal.
            Sempre houve equívocos quanto à História.  Talvez o principal seja seu vínculo ou confusão com o passado, o historiador visto como alguém preso ao dia de ontem.  O equívoco custou  a ser desfeito, embora já na antigüidade grega se fizesse a História da atualidade, como se vê em Tucídides. O comum foi negar o atual como História.  Ora, a categoria básica desse conhecimento é a temporalidade, supondo passado, presente e futuro.  Se este pode ser posto de lado enquanto objeto de estudo – pois descamba para especulações discutíveis como a escatologia ou o fim dos tempos, ou a recente futurologia, não mais que exercícios sobre as possibilidades de quanto acontece --, o atual ou contemporâneo é do domínio do historiador.
            A História não é o saber do antiquário, mas do homem preocupado com seu destino, sua origem e seu estado atual. Preocupava-o, essencialmente, sua realidade. Quer entendê-la, dominá-la, superá-la.  Vem a ser, então, sobretudo dinâmica, matéria viva, que empenha as criaturas na luta por melhor situação e não no culto saudosista de outras eras.  A justa compreensão do sentido histórico faz do homem alguém integrado em seu tempo, ao contrário do suposto pelos  que cultivavam a disciplina apenas para endeusar a pátria, a religião, a família, em práticas distorcidas e condutoras a falsificações de todo o tipo. Quem não está em sintonia com sua época não pode entender outras épocas, é claro.
            Para entender melhor a História, é preciso voltar-se para o coletivo, não para as individualidades excepcionais – o superado culto do herói.  Para o concreto, as formas de produção econômica, as classes sociais configuradoras de toda a sociedade.  Impõe-se o cotidiano – o comer, o vestir, o morar, o trabalho, a educação, a saúde, as idéias e as crenças, os sistemas de pensamento e as religiões, a produção intelectual como a arte, a ciência, como também para o lazer, o amor, as formas de convivência.  É mais importante o conhecimento das bases materiais da vida que a série de príncipes, reis, chefes de Estado, generais e líderes religiosos.  O cotidiano e as mentalidades conformam os costumes, as atitudes.  Entender esse quadro conta mais que a descrição de uma batalha ou de guerras. 
            Essa é a compreensão atual da História.  Cabe um papel decisivo na pedagogia ao professor, que não deve apelar para a decoração de nomes e datas, mas para o entendimento do processo social, única forma possível de tomar posição  no complexo quadro de disputas de grupos e interesses – cada vez mais vivo em nossos dias e no futuro pelo crescimento populacional, pelas disparidades na distribuição das riquezas, pela permanência de privilégios.  A história mostra que o homem só vive em função da liberdade e esta supõe a igualdade de condições para todos. 


Texto adaptado a partir de IGLÉSIAS, Francisco. A História vive.  Revista sala de aula, abril de 1989.