sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dossiê "Sinal Fechado" III - Considerações finais



“Acorda Amor”
A vida e a morte de Julinho da Adelaide

Chico Buarque criou Julinho da Adelaide, imaginando o excesso de trabalho dos censores obrigados a analisar uma quantidade brutal de músicas (1). Além do nome “ingênuo”, deu-lhe um passado e uma personalidade, enfim... Deu-lhe vida, embora efêmera. Julinho da Adelaide viveu até 1975, ano em que o cantor admitiu publicamente tratar-se de uma fraude, em reportagem ao Jornal do Brasil. Com a ironia e o bom humor que lhe são peculiares, moldou seu alter-ego, inventou alguém com o qual o Regime Militar não precisava se preocupar. Um compositor fictício que chegou a fazer declarações gentis ao ofício de censor. Observando, inclusive, afinidades entre o “seu” trabalho e o dele. Veja a declaração de Chico Buarque, ou melhor, Julinho da Adelaide ao Jornal Última Hora:

Então, em relação à Censura, eu tenho esta posição: eu acho bobagem as pessoas falarem que a Censura prejudica, quando eu acho que o negócio de fazer samba, tem que se fazer muito samba. Eu faço muito samba, entende? Faço vários por dia, mesmo. O sujeito que trabalha lá, o trabalho dele é censurar música. Eu respeito muito o trabalho do cara. Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Quantos sambas você fez hoje? Oito, nove. O dia que eu faço dez eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo. (2)

Durante a única entrevista dada por Julinho da Adelaide, parece-nos que foi preocupação do criador realçar certos aspectos da personalidade de sua criatura, tornando-o o mais inofensivo possível. Carioca, nascido e criado na favela da Rocinha, Julinho da Adelaide incorporaria todas as características de um malandro clássico. Seu passado poderia ter sido matéria de inspiração para muitas crônicas policiais. Contador de vantagens, bem relacionado ou assim se dizendo, enumerava seus ilustres contatos, seja com a nata sociedade ou com os órgãos policiais. Mantinha-se misterioso sobre sua vida pregressa e finanças. Dispensava a leitura de jornais e revistas, só tratava de assuntos que lhe fossem recomendados por seu assessor (seu, também fictício, irmão e parceiro musical). Possuía um vocabulário recheado de palavras de efeito, muitas das quais não sabia o significado. Interessava-se muito pouco pela Ditadura Militar e na censura por ela propagada. Na verdade, Julinho da Adelaide mostrou totalmente avesso a qualquer engajamento político. E foi através desse personagem tão inofensivo ao governo que Chico Buarque conseguiu passar suas canções pelo DCDP sem o menor problema. A entrevista que no início parecia tratar-se mais de uma brincadeira, tornou-se mais uma ferramenta na aprovação das músicas, tanto que três foram gravadas sob esse pseudônimo: Milagre Brasileiro, Jorge Maravilha e Acorda Amor.


As três músicas tocavam em assuntos delicados. A primeira fazia uma crítica ao pretenso “milagre econômico” propagado pelo governo de Médici: “É o milagre brasileiro / Quanto mais trabalho/Menos vejo dinheiro”. A outra, de acordo com a “lenda urbana” (pois não há confirmação do artista sobre isso), também se refere ao presidente Médici, fazia menção a uma declaração da filha do militar na qual se dizia fã de Chico Buarque: “Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta”. A terceira canção será objeto de maior atenção nesse texto.
A maioria das músicas de Chico Buarque, além do lirismo e da poesia possui uma clara crítica social. Sempre valorizando a narrativa, aflora sentimentos através de pequenas histórias ou cenas do cotidiano, como podemos observar em Acorda Amor. Ela fala de um homem que acaba de ter um pesadelo. Assustado, acorda sua esposa para contá-lo. Em seguida, o sonho parece tornar-se real e ele novamente a acorda, porém desta vez para auxiliá-lo a procurar ajuda.
A canção aborda o sentimento de insegurança que assolava inúmeros intelectuais, políticos e artistas nos anos 70. Muitas vezes, tal sentimento deixava de ser uma simples aflição para tornar-se uma situação concreta: “Acorda amor / Não é mais pesadelo nada / Tem gente já no vão de escada / Fazendo confusão, que aflição”. O pior pesadelo podia tornar-se real: a casa invadida, a prisão, o exílio, a tortura e até mesmo a morte. “Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer / Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”.
No caso do governo ameaçar a vida e a liberdade do cidadão, a quem se recorre? Essa é a grande ironia colocada por Chico Buarque em Acorda Amor. Quando os órgãos oficiais imbuídos da tarefa de proteger passam a atuar como os agressores, os papéis se invertem. “Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”.  Em caso de perigo, chama-se o ladrão!
A perseguição política gerava medo, insegurança, prisão, tortura física e/ou psicológica, e, muitas vezes culminava com o pior tipo de silêncio: a morte. “Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. O compositor terminava sua canção de modo leve, incentivando a resistência e a luta política, mesmo ao tratar de temas tão delicados. Preso, perseguido ou exilado era necessário continuar a protestar: “Não esqueça a escova, o sabonete e o violãoO violão era o instrumento de protesto, indispensável como qualquer objeto básico de higiene. Ele representava a caneta, o pincel e a voz. Representava a necessidade de continuar a luta pela liberdade.



Ao lançar o álbum “Sinal Fechado”, Chico Buarque protestou contra o silêncio a que estava sendo submetido. Escolheu canções comprometidas com a crítica à realidade brasileira, como, por exemplo, “Festa Imodesta” de Caetano Veloso. Sua única composição em todo o disco é “Acorda Amor”, que fala da insegurança e do medo instaurado no período do regime militar. Para conseguir gravá-la, recorre à utilização do pseudônimo Julinho da Adelaide. Com o fim da mentira, o DCDP passou a exigir a carteira de identidade dos compositores.

Mesmo com todas as medidas tomadas com o intuito de vetar todo e qualquer tipo de produção engajada politicamente, os protestos só fizeram aumentar. Em junho de 1968, foi realizada no centro do Rio de Janeiro a Passeata dos Cem Mil, que uniu em uma só voz diversos segmentos da população cansados da repressão do regime militar.

Avenida Rio Branco tomada durante
 a Passeata dos Cem Mil.


Se Acorda Amor trata de um personagem que foge assustado da perseguição política, retrato do medo e do terror. No fim dos anos 70, João Bosco e Aldir Blanc compõem O Bêbado e o Equilibrista, um verdadeiro hino da esperança. Um hino da anistia, cantado na voz da Elis Regina. Esta canção expressa a expectativa da abertura política, e, consequentemente, o retorno dos exilados. “Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu num rabo de foguete”.



 Referência bibliográfica:

BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes. A MPB nos anos 70. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.

CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. Rio de Janeiro, Codecri, 1982.

NAPOLITANO, Marcos. História & Música. História cultural da música popular. (Coleção História & Reflexões). Belo Horizonte, Autêntica, 2002.

SANTA’ANNA, Afonso Romano de. Chico Buarque: a música contra o silêncio. In.: Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. Petrópolis, Vozes, 1978.

TABORDA, Felipe (org.). A Imagem do Som de Chico Buarque. São Paulo, Editora Francisco Alves, 1999.



(1) Sobre estes e outros assuntos, ver entrevista com o ex-censor Carlos Lúcio Menezes, que trabalhou na acessoria de imprensa dos governos Médici e Geisel. Disponível em: www.chicobuarque.com.br
(2) Jornal Ultima Hora, 07 e 08/09/74.